Vive. Como se
viver fosse só acordar e dar passos retos rumo às ordens, às ruas, aos pratos
de comida. E vivo permanece durante os dias mais quentes, suando no suor dos
outros que esbarram, ouvindo o som que toca aleatoriamente, deixando na frente
das portas entreabertas das moças atrasadas bilhetes cretinos que não dizem nem
se vai nem se volta.
Na pressa de viver mais em menos tempo,
tropeçou nas falhas da incerteza e caiu na besteira de querer amar. Amando é
estranho, não sabe amar direito. Olha pra toda a gente que está ali parada,
sedenta, excitada, humilhada e não sabe escolher. Oferece alguns sorrisos
tímidos, dá piscadelas inadequadas, anda de mãos dadas sem fazer promessas,
deixa grudado na gente o cheiro da eterna inverdade.
Disse a si mesmo num raro momento de
espontaneidade que precisa ter critérios perfeitamente calculados. A partir de
hoje não gosta de mulheres vazias, está cansado de pessoas vazias, mesmo sem
nunca, nunca ter quisto encher o próprio peito com nada além do ego, do amor
próprio exacerbado, da mania de autossuficiência. Porque os outros seres, ali
parados a esperar qualquer sinal, ou são incríveis e pouco belos ou belos e
vazios.
Importa que sejam
belos, belíssimos, que se destaquem no meio daqueles que mendigam do seu
desesperado afeto. Antes possuir um corpo belo e vazio a conviver com o
conteúdo dos corpos maltratados. Por que caiu na besteira de pretender amar se
sabe que só existe pra cumprir o ritual da santa mediocridade? Mas caiu. E na
tentativa de amar como amam as crianças, os jovens e as mulheres que se pintam
das mais perturbadoras provocações, fez chorar a alma da gente.
- Não sabe que ama
mal, criatura? Não sabe que anda desgraçando as já difíceis existências (ou
insistências) que toca? Quando deixa insaciável sede de cantarolar as canções
de amor, é a marcha fúnebre que estreia a lenta morte da gente.
Ainda vive. Como
se viver fosse o remédio contínuo contra a loucura que é existir. Vive nas
classes, nos computadores, nos ensaios. Mas inventou de querer mais do que
podia. Inventou de querer amar alguém além de si, inventou de sentir o que não
lhe caberia nem na próxima vida. E nesse infeliz tropeço fez surgir na alma da
gente uma cicatriz maior que o corte.